quinta-feira, 3 de junho de 2010

Amor sem limites

No Brasil, há 24,5 milhões de deficientes. O que acontece quando eles se apaixonam, namoram ou casam com um não-deficiente?

Quando viu a professora infantil Sylvia Lia Grespan Neves pela primeira vez, numa palestra em 2001, o professor de educação física Maurício Rodrigues logo se apaixonou - e decidiu levar aquela linda mulher para um lugar romântico. 'Escolhi um barzinho com música, bem fechado e escurinho. Achei que estava arrasando', lembra. Mas não estava. No escurinho, Sylvia, 37 anos, surda desde que nasceu, nem sequer conseguia ler os lábios do pretendente. 'Deficientes auditivos não gostam de lugares escuros e barulhentos. Como o Maurício não sabia nada de língua de sinais, nos falamos por bilhetes. Os garçons cansaram de trazer e recolher papéis', diz ela, contando sua história à CRIATIVA com a ajuda de Rafaela Sessenta, intérprete de libras (língua brasileira de sinais). 'Minha cabeça e meus olhos doíam, mas resolvi ficar com ele até o fim da noite. Achei que valia a pena.' Valeu: os dois moram juntos desde maio do ano passado.
Como Sylvia, existem em todo o planeta cerca de 500 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, sendo que 80% delas, segundo a Organização das Nações Unidas, vivem em países em desenvolvimento, como o Brasil. Por aqui, são 24,5 milhões de brasileiros deficientes, ou 14,5% da população, segundo dados do Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (veja os tipos no quadro 'A deficiência em números'). Também como Sylvia, muitos namoram ou se casam com não-deficientes, quebrando estigmas e vencendo barreiras. 'A inclusão dos deficientes passa pela escola, pelo mercado de trabalho e também pelo campo da afetividade', afirma o psicoterapeuta Fabiano Puhlmann, paraplégico desde os 18 anos, casado com uma não-deficiente.


RISADA IRRESISTÍVEL

No país, a incidência de deficiências entre as mulheres é um pouco maior: 15,28%, contra 13,66% em homens. Desde 1994, ano em que sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica, a psicóloga e publicitária Mara Gabrilli, de 37 anos, faz parte desse contingente. Hoje ela é secretária da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida da cidade de São Paulo. Há três anos namora o nutricionista Alfredo Galebe, de 40, um não-deficiente que a descobriu na televisão. 'Eu estava fazendo alongamento na sala de TV e, quando fui pegar o controle remoto para mudar de canal, ele escorregou para debaixo do sofá. Nesse momento, Mara apareceu no programa que passava. Fiquei hipnotizado', conta. 'Ao ouvir a risada dela, já sabia que era a mulher da minha vida.' Galebe tratou logo de agir: mandou um e-mail para Mara, convidando-a para um café.
Só que ela o cozinhou em banho-maria por longos meses. 'Ele me mandava vários e-mails', conta Mara, que nunca aceitava tomar o tal café. 'Quando pedi uma foto dele, me mandou a do cachorro. Aí achei que era um cara divertido. Saímos três meses depois', lembra. 'Ela devia achar que eu era baixinho, corcunda, narigudo e muito feio', brinca o nutricionista. No fim, foi Mara quem tomou coragem e pediu Galebe em namoro. Isso um dia depois de, em um restaurante, ele ter tirado a publicitária para dançar, mesmo ela não mexendo um músculo sequer abaixo do pescoço. Ele a conduziu na cadeira de rodas na maior naturalidade.

PRECONCEITO E CURIOSIDADE

Não há estimativas de quantos casais de deficiente com não-deficiente se formaram nos últimos anos. Mas Dorina Nowill, cega e fundadora de uma instituição que trabalha com deficientes visuais, acredita que, se antes o mais comum era se fechar numa instituição especializada e se relacionar apenas com seus pares, hoje a maioria dos portadores de deficiência interage mais com a sociedade, em todos os sentidos. 'O amor não aceita teorias', filosofa Dorina. 'Para namorar ou casar, o mais importante é gostar, porque dificuldades nos relacionamentos amorosos aparecem para deficientes e não-deficientes.'
É verdade que todo casal tem suas dificuldades de adaptação e briguinhas cotidianas. Entre deficientes e não-deficientes, porém, há rusgas específicas. 'Por não ouvir, Sylvia bate portas e gavetas, e o barulho me deixa maluco', queixa-se o professor Rodrigues. 'Se a Néia coloca o detergente em outro canto da pia, é um problema pra mim. E, se não acho algo, fico ligando o dia todo para ela, até encontrar', conta o músico João Souza, de 31 anos, que namora há cinco a auxiliar administrativa Ednéia dos Santos, de 27. Os dois se conheceram num bar - ele no palco, tocando violão e cantando, ela na platéia. Assim que bateu os olhos, Ednéia quis conhecer aquele músico 'tão interessante'. 'Nem liguei quando me disseram que ele era cego.'
Invariavelmente, esses casais enfrentam manifestações de preconceito, dos amigos, da família, de todos os lados. 'Uma amiga disse que eu nunca seria feliz com ele', afirma Ednéia. Mas ela não ligou para a opinião dos outros. Ele também não, embora confesse que ainda hoje se sente mal em certas situações: 'Sei que tem gente que olha diferente. E, sempre que alguém vem conversar, se dirige à Néia, achando que também sou surdo e não posso responder'.
Também para Rodrigues as coisas não foram fáceis. Ele chegou a respirar aliviado quando sua família aceitou a namorada surda. 'Pensei que não havia mais barreira a ser rompida, porque a gente tende a pensar que o preconceito está só no lado de quem não tem a deficiência', diz. Mas não foi bem assim. A comunidade surda teve dificuldade em aceitar a relação de Sylvia com um 'ouvinte'. 'As amigas diziam que era perigoso, que ele ia me abandonar logo, não aceitaria meu estilo de vida.'
Já Galebe não dá a mínima para comentários alheios. Aliás, ele defende que existe mais curiosidade do que preconceito. 'Várias vezes as pessoas se surpreendem conosco. Acham que namorar a Mara é uma espécie de sacrifício para mim. Quando a conhecem, ficam é se perguntando como ela pode namorar um cara como eu', brinca.

COMO TODO MUNDO

A curiosidade, diz Galebe, se estende ao sexo. 'As pessoas perguntam como transamos. Eu sempre explico que fazemos como todo mundo, não há nenhum equipamento especial.' Por experiência própria, o psicoterapeuta Puhlmann confirma que, mesmo que exista uma lesão medular que prejudique algumas respostas do corpo, o sexo não será muito diferente ou menos satisfatório: 'Antigamente, as pessoas achavam que minha mulher ia ser minha enfermeira. Isso é uma bobagem. Somos casados há mais de 15 anos e o sexo é ótimo. Tenho ereção e ejaculação como qualquer homem. Às vezes, até rola fantasia com a cadeira'.
No caso de Souza, a falta da visão, em vez de atrapalhar, até ajuda na cama. Acostumado a tatear objetos e pessoas, ele acredita que acaba tocando muito mais Néia do que um não-deficiente. 'Ele não é nada bobinho', entrega a namorada. 'Tinha gente que até me chamava de safado', acrescenta Souza, queixando-se que os amigos achavam que ele tinha que 'ficar' com a mais feia do bar só porque não enxergava. 'Eles pensam que a gente não tem sexualidade', diz o músico, que nunca namorou uma deficiente. O psicoterapeuta Puhlmann confirma que, de algum modo, a falta de visão esquenta o sexo. 'Quem não enxerga tende a fantasiar mais. Um perfume pode suscitar na pessoa um prazer todo especial.'


A deficiência em números. O grupo de brasileiros com deficiência se divide da seguinte forma:


57,16%* têm alguma dificuldade para enxergar
22,7% têm alguma dificuldade para caminhar
19% têm alguma dificuldade para ouvir
11,5% têm algum tipo de deficiência mental
5,32% não têm algum membro ou parte dele
2,3% são incapazes de caminhar
0,68% tem grande dificuldade em enxergar, ouvir, caminhar ou é incapaz de ouvir
0,6% é incapaz de enxergar
0,44% é tetraplégico, paraplégico ou hemiplégico

Fonte: 'Retratos da Deficiência no Brasil', levantamento feito pelo Centro de Políticas Sociais da FGV-RJ, com base nos dados do Censo/IBGE *Muitos entrevistados declararam ter mais de uma dificuldade e, por isso, o total é superior a 100%

Fonte:http://revistacriativa.globo.com/Criativa/0,19125,ETT1059409-2245,00.html

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